quarta-feira, outubro 20, 2010
A Memória do Elefante
Anos atrás quando conheci o Caeto, na famigerada esquina da Cardeal Arcoverde com esqueci que rua (foram anos de muitos excessos, me dêem um crédito), onde se concentravam e ainda de concentram dezenas de jovens ávidos por experiências marcantes e a destruição total do fígado e de espírito, nossas vidas eram bem diferentes. Diferentes do que são hoje e diferentes entre si. Eu era estudante de artes da Unesp, não sabia porra nenhuma de artes e me concentrava em fugir da formação, arranjando meios pra me definir como um artista "underground", buscava um ofício, algo mais palpável do que o mundo das galerias. Arrumei um emprego como animador em uma editora meio-período, e assim que acabava meu turno, corria pro bar. Mais do que tudo, eu bebia, e encontrei ali companheiros de copo e bagunça que se tornaram grandes amigos até hoje. Na faculdade conheci o Ulisses, sócio-fundador da revista independente Sociedade Radioativa, que junto com o Caeto, João Riveros e outros colaboradores (no começo da revista o Pedro Angeli também colaborava) tocavam a revista com paixão e desdém pelo mundinho descolado, numa celebração da informalidade e da vida safada, uma proto-Chiclete com Banana, o famoso "fanzinão genuíno, alma da contra-cultura. Era toscão e sujo em seu conteúdo, e obviamente me apaixonei de cara. Todos ali pareciam falar uma mesma língua maliciosa e experiente, tinham suas bandas há anos, conheciam todo mundo da cena punk e do rock paulista, tinham suas rixas e suas histórias de grupo fechado, uma mistura de faunas urbanas de dar inveja em outros grupos e nichos culturais. Foi no mesmo grupo que conheci minha mulher, Marina, que tocava no Biônica, onde conheci a Ju, o Ramone, Heleninha, que eram amigos da Manu, do Cauê, da Rita, que casou com o Alê, que tiveram um filho lindo, o Max, que é meu afilhado, hoje todos meus amigos queridos. E a esquina da Careal era nosso quartel general.
O Caeto sempre foi pra mim o representante maior dessa coisa toda. Me encantei pelo cara, pra não dizer que me apaixonei mesmo, esses caras com uma vida fodida, toda torta, largou a escola, fazia tudo na raça, bebia que nem um porco, tinha cara toda marcada, um papo engraçado, uma formação de rua, uma firmeza louca pra dizer absurdos lindos sobre como as coisas eram e deveriam ser, um tapa na cara de um classe média como eu que sempre teve a tendência de se aproximar dessas figuras míticas que sobreviveram às maiores intempéries da vida e mesmo assim conseguiam sair encantadores e envolventes do outro lado. Ficamos amigos de imediato, entrei pra revista e em pouco tempo já fazia parte da cúpula, adotado pelo Ulisses e pelo Caeto. Todo encontro no bar era uma reunião, todo show dos nossos amigos era regado a muita cerveja e quadrinhos. Pra piorar minha paixão pelo cara, ele desenhava como ninguém, tinha um volume de histórias auto-biográficas impressionante, mil idéias por segundo, sempre com a história da próxima revista na cabeça. Os lançamentos eram algo a parte (a revista já existia há quatro cinco anos quando eu entrei). Shows de bandas, música boa, casa lotada, sucesso incontestável. Em pouco tempo a revista se pagava e vez por outra pagava nossas cervejas, vez ou outra entrava até um cachê pros editores. Saiu do formato fanzine, virou revista, fomos à loucura quando publicamos a capa colorida, papel cuchê e o caralho. O grupo de colaboradores aumentou, entraram o Gisé, Judas e Luisa, qualquer coisa era motivo pra beber e bolar o próximo número. Fizemos cartazes, colamos pela cidade, distribuíamos flyers, mandávamos pra lojas em outros estados. Lembro como uma época de ouro, nos comportávamos como reis do independente paulistano, inebriados por nossas conquistas.
A coisa toda durou alguns anos, depois foi lentamente degringolando. Aos poucos o papo foi ficando sério, as necessidades de cada um pediam por atenção. O Ulisses e o Caeto foram morar juntos na famosa casa dois, cada um tentava se virar como podia pra levantar grana. Nessa época a situação financeira e emocional do Caeto balançava, começou a pintar enormes telas, fez sua primeira exposição. Era um cara que lutava uma luta diferente da nossa, não tinha a quem recorrer, não conseguia trabalhar em qualquer lugar, não tinha formação pra bons trabalhos fixos, se virava com freelas esporádicos, sub-empregos e uma necessidade absoluta de beber até cair. Sua relação com os pais não era das melhores, vivia momentos de desespero e descontrole cíclicos, não conseguia romper com os traumas que a vida tinha lhe apresentado. Nunca deixei de beber com ele, acho que nenhum dos amigos deixou, mas não havia muito que pudéssemos fazer, eram as escolhas de um cara sem muitas opções. Mas nunca deixou de ver graça na própria merda, sabia analisar como poucos sua própria condição, eu diria até que era sua melhor qualidade. Mas quem pagaria um cara pala falar de si mesmo?
Numa sinuca de bico, ele mudou de casa algumas vezes, morou de favor na casa de amigos, descolou trabalho tocando em balada, declarou independência da revista e criou a sua própria. A Sociedade Radioativa acabou, cada um foi prum lado, o Caeto se manteve firme nas HQs. Seu discurso mudou aos poucos, foi apresentar seu projeto em editoras, foi o primeiro entre nós a encarar quadrinhos como uma profissão. Eu fui me esconder no design, fiz meus curtas de animação, montei com amigos de faculdade um coletivo chamado Base-V. Nessa época nos víamos pouco, acompanhei de longe a luta do meu herói. Nos encontrávamos pouco, soube que ele tinha encontrado uma menina legal, a Luana, namorava firme depois de muito tempo trepando em histórias curtas. O que me impressionava mais nele era uma sensibilidade muito específica com o mundo, não era um cara que "comia menininhas" ou "cagava pra filho da puta". Saia na porrada eventualmente, enchia a cara e o saco de gente por aí, mas nunca se comportava como um sujeito alheio, indiferente. Pelo contrário, ficava em crise, chorava, tentava entender sua condição, sabia ouvir, sabia discernir quem era sacana e quem era legal. Um cara genuinamente BOM, que queria mudar, acertar os pontos com a humanidade, sair da merda, equilibrar a vida. Foi o que vi ele fazer, aos poucos, se disciplinando, mudando seu traço, construindo um projeto mais longo pras suas histórias, pra sua vida. Aumentou as escalas das suas pinturas, fazia paredes agora, arrumou trabalhos maiores, mais bem pagos, se ajeitou com a Luana, moravam juntos agora, esperavam um filho. Fechou contrato com a Cia das Letras pra um livro longo,começou Kung Fu, se mudou pra Bragança, parou de beber tanto. Sentei com o editor dele (que por sinal é o meu também, o incrível André Conti) e lembro muito bem quando ele me falou: "cara, esse Caeto é um geninho. Não existe nada igual ao que ele faz na história do quadrinho brasileiro". Quase chorei, era impossível explicar pra qualquer um o que tinha sido a história toda, o tamanho da minha admiração pelo Caeto, pela trajetória absurda e a batalha que foi a vida do meu amigo. A Sociedade Radioativa, as bandas, as amizades e o carinho que nos rodeava à todos, a indescritível união que nos mantinha juntos, e que de certa forma mantém até hoje.
Essa sexta-feira é o lançamento do livro do Caeto, no Espaço +Soma, uma noite inesquecível, garanto. É um livro de cento e tantas páginas, sobre a vida dele, daqueles livros que você caga de rir e chora no fim, uma montanha russa de emoções contada com maestria e raro talento, um marco. Música boa, amigos, bebidas. Espero todos lá.
segunda-feira, outubro 18, 2010
segunda-feira, outubro 04, 2010
Pai
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